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Trabalhar como pesquisadora foi um caminho natural, mas nada fácil, para a imunologista Denise Tambourgi, que se fascinou pela ação de antígenos e anticorpos ainda no ensino médio, durante as aulas de laboratório da escola onde estudava na zona leste de São Paulo (SP).

Formada em Biologia pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Imunologia pela USP, doutorado sanduíche pela USP e Universidade Yale, nos Estados Unidos, e pós-doutorado pela Universidade de Cardiff, no Reino Unido, Denise fez importantes contribuições para as áreas de imunologia e toxinologia e, mesmo assim, se surpreendeu ao ser indicada a cargos antes nunca dados a uma mulher. Ela se tornou a primeira mulher editora-chefe das revistas Toxicon e Toxicon X, que são referência na área de Toxinologia, e a segunda mulher eleita presidente da Sociedade Internacional de Toxinologia (IST, na sigla em inglês). Surpresa com as nomeações, ela pensou em não aceitar os cargos, o primeiro anunciado em 2022 e o segundo com início de gestão em 2024.

“Pelo estágio da carreira em que estou, pensei em não aceitar o convite de editora-chefe, mas entendi que havia um legado a deixar: mostrar para outras mulheres ‘que é possível, que alguém no mundo vai entender que você tem competência e que pode contribuir com alguma coisa’”, pondera.

Quando veio o resultado da eleição da IST, Denise hesitou, embora houvesse se candidatado a pedido de colegas. Além de ter se tornado a segunda mulher a alçar o posto, se tornara a primeira pessoa da América Latina naquela posição.

“De alguma forma, pensei: o Brasil terá uma mulher nesta posição, e, além disso, eu não estou sozinha, eu represento o Instituto Butantan, antes de qualquer coisa. Acho que esta marca é boa para os pesquisadores, para os estudantes e para as mulheres da nossa instituição”, reflete.

Denise já tinha um vasto currículo acadêmico em posições de destaque quando aceitou os cargos. Foi diretora do laboratório de Imunoquímica do Butantan de 1996 a 2021, presidente da Sociedade Brasileira de Toxinologia de 2011 a 2017, membro do Conselho da Sociedade Internacional de Complemento e Membro do Conselho da Sociedade Internacional de Toxinologia, entre outros.

Atualmente, a pesquisadora soma as posições de pesquisadora 1B na área de Imunologia do CNPq, de vice-coordenadora do Centro de Excelência para Descoberta de Alvos Moleculares do Butantan (CENTD/FAPESP/GSK) e de investigadora principal do Centro de Toxinas, Resposta-Imune e Sinalização Celular (CeTICS/FAPESP).

Com fama de ser rigorosa, mas generosa com colegas, Denise é lembrada também pela produção de grandes eventos científicos no Butantan, com forte presença de renomados pesquisadores estrangeiros. Feitos, segundo ela, com o objetivo de incentivar a troca de conhecimento entre cientistas brasileiros e de fora, bem como de permitir aos estudantes terem contato com importantes nomes da ciência no mundo.

“Muitas das minhas ações tiveram como objetivo movimentar o meio, fazer com que outras pessoas, principalmente os estudantes, fossem motivados e tivessem oportunidades, assim como eu as tive na vida”.

Da Mooca para o mundo da ciência

Ao lembrar de sua trajetória como pesquisadora, Denise remonta a sua origem, de quando frequentava a Biblioteca Municipal da Mooca, para estudar ciências, sua paixão desde o ensino médio, e seu trunfo para ingressar na USP.

“Ter sido apresentada ao universo do Instituto de Biociências da USP foi encantador para mim, que vim de escola pública, de uma família sem tradição de estudo, sendo a primeira a frequentar a universidade. Um dia, quando estava fora do país, pensei: olha de onde eu vim e olha onde estou agora”, lembra a liderança científica do Butantan.

Seus êxitos na ciência foram fruto de muita persistência, rigor e resiliência. Ainda no primeiro ano de faculdade, certa de que queria estudar imunologia, mas sem a disciplina no currículo, Denise bateu à porta do laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan. Lá, pediu um estágio ao diretor Ivan da Mota e Albuquerque (1920-2014), que não a acolheu naquele momento pela falta de experiência da caloura.

Ao final do ano seguinte, em 1977, ela procurou os pesquisadores Wilmar Dias da Silva e Thereza Kipnis, que ministravam um curso de pós-graduação de Nivelamento de Imunologia, na Faculdade de Medicina da USP. Os cientistas a informaram que ela poderia acompanhar o curso, fazer as provas e, caso aprovada, poderia iniciar o estágio.

“Fui aprovada, e então eles me aceitaram no estágio. Comecei a fazer iniciação científica enquanto vi ser criado o Departamento de Imunologia da USP, e a formação da nata da imunologia do país. Eu era a criancinha do grupo”, recorda.

Eureca

Depois de se especializar em imunologia nos estudos dentro e fora do país, Denise passou no concurso do Instituto Butantan em 1994, onde começou a estudar a ação do veneno da aranha marrom (Loxosceles spp), um dos mais tóxicos que existe.

Na época, Denise ficou intrigada com a hemólise intravascular presente em alguns pacientes envenenados pela aranha marrom, e imaginou um possível alinhamento com o que pesquisava. Ela e Wilmar Dias da Silva estudavam, na doença de Chagas, o papel do sistema complemento, um conjunto de proteínas presentes na circulação sanguínea que são ativadas para destruir patógenos e outros corpos estranhos que circulam no sangue.

“Fui estudar se o sistema complemento estava envolvido na destruição das hemácias após contato com o veneno da aranha marrom, e, sim, estava. Conseguimos descrever qual era o mecanismo da destruição das hemácias no envenenamento e a participação do complemento neste evento”, conta.

O estudo virou um robusto projeto de pesquisa, coordenado por Denise, com contribuição de pesquisadores do Reino Unido. A pesquisa resultou na descoberta de proteínas específicas do veneno da aranha marrom que causavam os principais danos do envenenamento. Além disso, permitiu o entendimento de mecanismos envolvidos no desenvolvimento da lesão necrótica também presente nos envenenamentos. Com esses estudos conseguiu desenvolver uma pomada para tratar a lesão.

“Eu sempre pensei no paciente. Não na pesquisa básica pela pesquisa básica, mas sempre em uma pesquisa que entendesse o mecanismo e que, eventualmente, pudesse ser transformada em um possível tratamento”, afirma.

Em 2019, a pomada começou a ser utilizada em um ensaio clínico com pacientes acidentados de Santa Catarina, já que é no Sul onde ocorrem mais acidentes com a Loxosceles. O estudo foi paralisado pela pandemia de Covid-19 e retomado no ano passado. Denise espera conseguir finalizá-lo em 2023.

“Felizmente, a gente está caminhando. Se isso vai dar certo ou não, eu não sei. Mas pelo menos tentamos. Este é o primeiro ensaio clínico de uma pomada para tratar uma lesão necrótica em envenenamento por animal peçonhento no mundo”, comemora.

Vida real

Apesar de ter se aposentado do laboratório de Imunoquímica em 2021, Denise diz que voltou periodicamente à bancada por duas razões: para dar andamento aos seus projetos junto ao CeTICS e ao CENTD e por uma razão pessoal que lhe ‘abalou as estruturas’.

Em dezembro de 2022, o namorado de sua filha mais nova foi picado na mão direita por uma jararaca e teve um dedo amputado. O jovem passava o fim de semana no sítio da família, no interior de São Paulo, quando sofreu o acidente. Ele foi encaminhado ao Hospital Vital Brazil, onde recebeu o soro antiofídico e se restabeleceu. Porém, dias depois, a necrose que se mantinha no dedo piorou, e o membro precisou ser amputado.

“Eu vim para o Butantan para tentar fazer alguma coisa para ajudar nestes casos. Quando você vê isso de perto é tão difícil. Você sabe que é uma doença negligenciada, mas ver isso em um menino de 30 anos, em um local como São Paulo, é chocante e muito triste”, lamenta.

Passado o choque inicial, Denise reflete que situações semelhantes é que fazem a produção de soros hiperimunes, como os feitos pelo Butantan, continuar sendo tão fundamental.

“Este é um tema para o qual a gente precisa continuar chamando atenção. O Instituto Butantan tem que continuar trabalhando com venenos e toxinas porque muita gente continua morrendo ou sendo amputada aqui e no mundo. Precisamos ajudar de alguma forma”.

Fonte: Camila Neumam (I. Butantan) 

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