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Curioso e teimoso: esses eram os apelidos que Wilmar Dias da Silva, liderança científica do Instituto Butantan, recebia da avó quando criança. Entre outras estripulias, ele vivia quebrando escondido os ovos das galinhas que ela criava para tentar descobrir como os pintinhos se desenvolviam. Hoje, com uma vida quase centenária dedicada à pesquisa, o imunologista acumula contribuições que atravessam as fronteiras do Brasil. Liderou a construção de um serpentário para produção de antivenenos na África; a descoberta de uma importante molécula mediadora da inflamação; a recuperação da produção de soros do Butantan na década de 1980; a criação do atual Centro de Desenvolvimento Científico (CDC) do Instituto; e o desenvolvimento do soro antilonômico, que salva vidas de pessoas envenenadas pela lagarta Lonomia obliqua.

No auge de seus 93 anos e com o entusiasmo de um rapazote de 20, o professor não para: sobe e desce as escadas do famoso Prédio Novo do Butantan todos os dias para trabalhar no Laboratório de Imunoquímica, que ajudou a implantar e dirigiu entre 1988 e 1996. Apesar do nome, ele lembra que o edifício foi construído na década de 1940 e costumava abrigar a produção de soros. Até hoje, orienta estudantes, participa de experimentos e marca presença em todos os eventos do Instituto.

Nascido em 12 de outubro de 1930 na cidade de Barbacena (MG) em uma família humilde, Wilmar se formou em Medicina Veterinária aos 26 anos pela Universidade Federal de Viçosa, e fez mestrado e doutorado na mesma instituição. Entre 1964 e 1970, durante o pós-doutorado na Universidade Case Western dos Estados Unidos, seu nome ganhou destaque internacional: o estudo do mediador da inflamação C3a rendeu a publicação de oito artigos e foi uma verdadeira virada científica.

A molécula C3a é gerada após a quebra de uma proteína chamada C3, que faz parte do Sistema Complemento, composto por dezenas de proteínas que atuam em sequência para se defender de uma infecção. O C3a é um pequeno peptídeo com função inflamatória que induz resposta imune após um dano tecidual. Na época, não era possível associar diretamente o Sistema Complemento ao inchaço que ocorre no início das reações inflamatórias. Essa quebra de paradigma permitiu definir o papel do C3a na imunidade inata, aquela presente desde o nascimento.

Com a vida bem encaminhada nos Estados Unidos, Wilmar foi indicado para ser professor de patologia experimental na Universidade de Connecticut. Mas enquanto acertava sua instalação, recebeu um convite inesperado: colaborar no Curso de Imunologia da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), que seria implantado no Brasil e sediado pelo Instituto Butantan em 1970.

A ligação causou grande impacto, mas o professor não teve dúvidas de que deveria retornar: era uma oportunidade de contribuir para a introdução da imunologia no Brasil. O curso da OMS/OPAS fazia parte de um esforço global para difundir conhecimentos que a entidade julgava importantes para o controle de doenças infectocontagiosas.

Em 1975, com o encerramento do curso, Wilmar deixou o Butantan e decidiu prestar concurso para ser professor de Imunologia da Universidade de São Paulo (USP). Entre outras contribuições do cientista na época, destaca-se a fundação da Sociedade Brasileira de Imunologia em 1972, ao lado de Otto Bier, Ivan Motta e outros imunologistas de renome. Ele também foi coautor do primeiro livro teórico da área em língua portuguesa, “Imunologia Básica e Aplicada”, lançado em 1977.

Mas, após mais de dez anos atuando como docente da USP, o destino trouxe Wilmar de volta ao Butantan na década de 1980: ele foi chamado, junto a outras lideranças científicas emergentes, para resgatar a produção de imunobiológicos do Instituto, então dirigido pelo geneticista Willy Beçak.

Em 1996, o pesquisador foi chamado para lecionar na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro, da qual recebeu o título de professor emérito em 2018. No início dos anos 2000, foi convidado para retornar à capital paulista e ser professor do Departamento de Pediatria na Faculdade de Medicina da USP – mas o caminho novamente o levou ao Butantan, onde orientou o desenvolvimento do soro antilonômico, contra o veneno da lagarta Lonomia obliqua.

Atenção aos problemas de saúde africanos

Movido pela preocupação social, Wilmar idealizou o projeto ProÁfrica em 2005, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A missão era capacitar pesquisadores e construir uma fábrica de produção de soros na África. Só em Moçambique, país sede do programa, existem 80 espécies de serpentes, sendo 37 peçonhentas. Cerca de 400 mil acidentes com cobras são registrados por ano no continente – número que, considerando a subnotificação, pode chegar a 1 milhão.

A primeira etapa do projeto foi um treinamento de manuseio de serpentes e produção de soros oferecido no Butantan para cientistas da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, capital de Moçambique. Depois, a equipe brasileira foi até a instituição africana para ministrar cursos de Imunoquímica.

“Também incentivei a implementação de uma linha de pesquisa no Butantan sobre as toxinas de cobras africanas, como as do gênero Naja Bitis, predominantes na região e até então pouco conhecidas. Esses estudos levaram ao desenvolvimento de soros antiofídicos contra o veneno dessas serpentes”, conta Wilmar.

Para possibilitar a produção local de antivenenos em Moçambique, foi construído em 2020 um serpentário adequado para a criação e reprodução de serpentes, com auxílio da iniciativa privada. O próximo passo é buscar financiamento para equipar a unidade.

Wilmar decidiu ampliar sua colaboração com a África: ele passou a trabalhar no desenvolvimento de uma vacina contra a bactéria Escherichia coli patogênica, principal causadora da diarreia em crianças. “O trabalho foi um sucesso. Minha aluna de mestrado na época – e, mais tarde, doutorado –, Halyka Luzório Franzotti, desenvolveu uma proteína recombinante usando como vetor a BCG [vacina da tuberculose] modificada com fragmentos da E. coli”, explica. Com o artigo publicado e o produto patenteado, os pesquisadores estão se preparando para os ensaios pré-clínicos.

Os feitos científicos do professor lhe renderam importantes prêmios e homenagens, entre eles a Medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico do Ministério da Ciência e Tecnologia (1995), a Medalha Instituto Butantan pela relevância de seus trabalhos (2012), entregue pelo governo de São Paulo, e a Medalha Legislativa Municipal do Mérito Dr. Vital Brazil, concedida pelo governo do Rio de Janeiro (2015). Também recebeu dois honrosos convites: professor nomeado da Faculdade de Medicina da Universidade Broussais, de Paris, e pesquisador convidado do Centro de Pesquisa de Sangue da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos (1979-1980).

Ensinando a voar

Uma parte fundamental da essência de Wilmar é o ensino. O professor, querido por todos que têm a chance de conviver com ele, já formou dezenas de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, e orienta estudantes em seu laboratório até hoje, participando ativamente dos experimentos com animais – algo que, por amor, ele faz questão de fazer.

Em um grande mural próximo à sua sala, o pesquisador mantém incontáveis fotografias com alunos que já passaram pelo laboratório. Em seu amadurecimento como orientador, ele conta que desenvolveu um princípio: formar pesquisadores para que sejam independentes. “Acompanho o aluno de perto no início e, quando percebo seu talento, dou liberdade para que ele se desenvolva sozinho”, diz.

Em 2022, como parte da comemoração dos 50 anos da Sociedade Brasileira de Imunologia, alguns cientistas da área foram convidados a compartilhar relatos sobre a história da organização. Uma delas foi a pesquisadora Ana Paula Junqueira-Kipnis, da Universidade Federal de Goiás, que deu um depoimento sobre Wilmar – que também é seu sogro. Ela trabalhou com ele em 1989 e afirma que sua vida mudou depois disso.

Além de seus pupilos, a atenção de Wilmar também vai para os colegas de profissão: é possível encontrá-lo na plateia de praticamente todos os seminários do Butantan, acompanhando os trabalhos de seus pares. Para a pesquisadora Sonia Andrade, a palavra que melhor define o professor é generosidade, por toda sua dedicação ao ensino, à ciência e aos projetos sociais. A amizade dos dois teve início quando ela o convidou para distribuir as medalhas aos jovens vencedores da Olímpiada Brasileira de Biologia em 2019. Desde então, seus encontros são regados de sábias conversas sobre pesquisa – e sobre a vida.

“É a vida, que me tem dado tanto”

Wilmar Dias da Silva é professor, pesquisador, marido, pai, padrasto, avô, bisavô e grande apreciador de música. Estuda intensamente histologia e imunologia e, por prazer, nas horas vagas, faz exercícios de matemática. Graduado em Letras na USP, também cultiva o gosto pelo latim. Com sua primeira esposa, Maria José da Costa Dias, teve três filhos, dos quais dois seguem a carreira acadêmica. Em seu segundo casamento, com a pesquisadora Thereza Liberman Kipnis, com quem conviveu por 34 anos, ele ganhou quatro enteados (filhos, também). E a família continua crescendo, com 16 netos e quatro bisnetos.

O professor conheceu Thereza durante suas passagens pelo Butantan e pela USP. Na época, os dois marcavam encontros na famosa padaria Estrela do Butantã. Juntos, ajudaram a criar o Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, construíram o Laboratório de Biologia do Reconhecer na Universidade Estadual do Norte Fluminense e organizaram encontros científicos que resultaram na criação dos Congressos de Imunologia. “Nós nos entendíamos muito bem cientificamente e pessoalmente”, conta.

Wilmar vive sozinho há 15 anos, desde o falecimento da esposa. Segundo a nora Ana Paula, ele pratica exercícios regularmente, não bebe e nem fuma, mantém uma alimentação balanceada e o apartamento sempre organizado. Não gosta de ter internet em casa para poder ter seu tempo só para ele.

“Quando Maria José e Thereza faleceram, tive um princípio de depressão. Mas, conversando com meu alter ego, ele disse: ‘Wilmar, apesar de esse episódio ser muito triste, você não pode se queixar da sua vida. Porque tudo aquilo que você quis, apesar de você não ter nenhum talento especial, você conseguiu’. Tenho familiares queridos e excepcionais, amigos condescendentes, colaboradores científicos e estudantes talentosos. É a vida, que me tem dado tanto”

Fonte: Aline Tavares, do Instituto Butantan

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