CONEXAO 369

A importância da pesquisa científica para o desenvolvimento de um país é reconhecida por todos. No Brasil, foi confirmada pelo excelente desempenho de nossa comunidade científica desenvolvendo novas vacinas durante a pandemia de covid-19 e por outros projetos, na fronteira do conhecimento, capazes de trazer grandes benefícios à população.
Entretanto, alguns fatos recentes justificam comentar mais uma vez este tema. De um lado, a intenção expressa e diversas vezes repetida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de privilegiar os investimentos em educação e pesquisa e a recente aprovação, pela Comissão de Assuntos Econômicos da Câmara dos Deputados, do projeto de lei que autoriza destinar à pesquisa até 6% do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF); e, de outro lado, algumas dificuldades enfrentadas atualmente por projetos de pesquisa em curso em diferentes centros no Brasil.
Para estimular a concretização dessas decisões a favor da pesquisa vale lembrar, como exemplo, que em 2015 a Coreia do Sul, com 51 milhões de habitantes, investiu em educação e pesquisa 7,6% do seu PIB, de US$ 1,4 trilhão, enquanto o Brasil,
com 204 milhões de habitantes, investiu apenas 2,3% do seu PIB, de US$ 1,8 trilhão. Os efeitos dessa diferença se tornaram evidentes observando que, em 2021, a situação se inverteu: o PIB da Coreia do Sul subiu para US$ 1,8 trilhão e o do Brasil diminuiu para US$ 1,6 trilhão.
No Brasil, uma análise abrangente da questão mostra que, além da escassez de recursos como um todo, enfrentamos outra dificuldade decorrente da legislação atual, que não permite pagar aos pesquisadores experientes nas universidades e institutos de pesquisa salários competitivos com os de mercado.
Note-se que o já referido e excepcional resultado que obtivemos durante a pandemia foi possível pelo fato de que, em decorrência da situação de calamidade, alguns centros de ponta receberam verbas públicas destinadas à produção de vacinas na modalidade “encomenda tecnológica”, ou seja, permitindo pagar pesquisadores “por empreitada”.
Esse exemplo confirma a excelência dos nossos cientistas e mostra como seria possível evitar a interrupção de vários projetos de pesquisa atualmente em curso, impedindo a migração de pesquisadores universitários para o exterior.
Nesse sentido, vale citar um dos projetos que está sendo desenvolvido na USP: Produção nacional de suínos geneticamente modificados voltados para xenotransplante. Visa a produzir órgãos adicionais para transplante em humanos, terminando com as listas de espera nas quais muitos pacientes falecem antes de serem transplantados. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, no Brasil 7 inscritos morrem por dia antes do procedimento. O fim das listas de espera, além de salvar essas vidas, permitirá uma grande economia de recursos ao Ministério da Saúde, que em 2018 destinou cerca de R$ 3 bilhões apenas para hemodiálise renal.
Além da fuga dos melhores cérebros para empresas privadas no exterior, evitará algumas judicializações que garantem a realização de tratamentos médicos especiais. No total, em 2019, custaram ao Ministério da Saúde cerca de R$ 5,2 bilhões. Desse total, esse ministério tem pago a centros no exterior cerca de US$ 1 milhão por transplante de tipo não realizado no Brasil ou com resultados ainda não aceitáveis.
A recente realização nos EUA de xenotransplantes suínos de coração e de rim mostra que naquele país esse procedimento se tornará, em breve, rotineiro. Dessa forma, se o xenotransplante não for realizado no Brasil, será inevitável que os pacientes sem perspectivas de serem transplantados, entre os 54.172 inscritos em lista de espera (2022), judicializem o procedimento, causando enormes despesas adicionais ao Ministério da Saúde.
O projeto de xenotransplante da USP já está muito adiantado, prevendo-se para setembro o nascimento dos primeiros suínos geneticamente modificados, doadores de órgãos para humanos. Entretanto, corre o risco de interromper suas atividades pela dificuldade já exposta de não poder pagar aos pesquisadores salários em nível de mercado.
A solução poderia ser o Estado selecionar e financiar projetos de pesquisa com liberdade para pagar adequadamente os pesquisadores, quem sabe por meio de parcerias público-privadas. Na realidade, trata-se de incentivar e apoiar a pesquisa científica acrescentando-a aos meios atualmente propostos para diminuir a diferença de classes que, infelizmente, caracteriza o Brasil.
Desta ou de outra maneira, além de favorecer a pesquisa científica nacional, o Estado estará evitando a outra alternativa, que seria aceitar as insistentes propostas de associação com empresas multinacionais. Nessa hipótese, no projeto xenotransplante, dificilmente poderíamos manter nossa decisão de distribuir os órgãos adicionais exclusivamente por meio do SUS, do qual tanto nos orgulhamos.
A legislação atual não permite pagar aos pesquisadores experientes salários competitivos com os de mercado. Numa visão mais abrangente, estaríamos tentando evitar que mais uma vez nossas inteligências contribuam para o desenvolvimento de outros países, e não o contrário. É chegado o momento de substituirmos o brain out pelo brain in.
Silvano Raia, publicado em O Estado de S. Paulo, em 19 de julho de 2023
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