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A pesquisa científica ambiental no Estado de São Paulo está em processo avançado de desmonte. Falta de pessoal técnico qualificado, desarranjo e sucateamento institucional, falta de planejamento, de recursos e de controle social nos últimos 20 anos levaram a retrocessos, tanto da pesquisa, quanto da conservação de áreas protegidas no Estado.

O próximo passo já estava engatilhado e seria a concessão para exploração econômica da iniciativa privada de cinco áreas – Itirapina e Itapeva e florestas de Angatuba, Piraju e Águas de Santa Bárbara, todas com unidades de pesquisa atreladas -, colocadas para licitação em outubro de 2022. Por enquanto, a medida está suspensa por ordem judicial.

A denúncia é da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), já apresentada à Assembleia Legislativa do Estado (Alesp) este ano. Patrícia Bianca Clissa (foto acima), pesquisadora do Instituto Butantan e presidente da APqC, identifica uma clara priorização de interesses econômicos em detrimento do bem comum na gestão estadual das áreas.

O edital mencionava como objetivo do certame o “manejo florestal em áreas de florestas exóticas plantadas e atividades associadas para gestão técnica e comercial, com foco em produtos e subprodutos florestais, para madeira ou resina de pinus e novos plantios comerciais de pinus e/ou eucaliptos”.

Para Helena Lutgens, vice-presidente da APqC, o edital reforça a visão de que a permissão de uso tem um destino certo: grandes empresas que produzem matéria-prima para papel e celulose. “Tanto que o tempo de cessão, 15 anos, coincide com o período de dois ciclos de cultivo de eucalipto”, observou Lutgens. Para ela, “as concessões não prejudicam só as pesquisas, prejudicam a conservação.”

As áreas previstas no edital também abrigam espécies ameaçadas de extinção, como o mico-leão preto que habita a floresta de Angatuba; a onça-parda Puma (extinta em várias partes do mundo), o pica-pau-chorão e o escorpião-do-sol (Mummucia coaraciandu), presentes em Itirapina.

“O mundo inteiro está vendo a importância de manter, de conservar, de aumentar as áreas (de proteção ambiental), enquanto isso, São Paulo está diminuindo, é um contrassenso chocante”, acrescentou Clissa.

No dia 16 de agosto, a APqC divulgou mais um dos indicadores do desmonte, um levantamento mostrando que há 7.991 cargos vagos nos institutos públicos estaduais de pesquisa científica, número que representa 78,6% do total de 10,1 mil servidores que poderiam estar trabalhando para produzir ciência nas instituições com essa finalidade. As áreas mais atingidas são agricultura, saúde e meio ambiente.

Na Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil), 77,1% dos cargos estão vagos, de acordo com o levantamento. Tanto na agricultura, quanto na área de meio ambiente, o último concurso público foi há 20 anos.

Marcos ambientais

São Paulo tem 34 estações de experimentação ambiental, a maioria criada nas décadas de 50 e 60 sob o guarda-chuva do antigo Serviço Florestal. Tinham como objetivo dar apoio científico e técnico às políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento socioeconômico do Estado por meio de indústrias que se utilizavam de produtos florestais, como a de papel celulose, madeira, resina e a produção de dormentes para as linhas férreas.

A desestruturação do sistema que mantém o meio ambiente no Estado começou há muito tempo, mas foi acelerada a partir de 2020, quando o então governador João Dória, em plena pandemia, obteve aprovação da Assembleia Legislativa (Alesp) para o Projeto de Lei 529, que se tornou a Lei 17.293 de 15 de outubro de 2020.

Com a justificativa de reduzir o déficit fiscal do tesouro estadual, a Lei 17.293 determinou cortes de despesas em diversas áreas – da reforma da previdência dos funcionários públicos à alienação de imóveis, passando pela extinção de 11 autarquias e fundações. Também alterou a Lei 16.260, de 29/6/2016, que autoriza a Fazenda do Estado a conceder a exploração de serviços ou o uso, total ou parcial das Unidades de Conservação (Parques e Florestas Estaduais).

A revisão incluiu 25 áreas protegidas que ficaram disponíveis para concessão à iniciativa privada e revogou o parágrafo IV do Artigo 2º, que assegurava que os recursos obtidos com as concessões fossem integralmente aplicados na gestão e conservação das unidades.

Entre as instituições extintas estava a Fundação Florestal (FF), um órgão criado em 1986 para substituir o centenário Instituto Florestal (IF). Sob protestos da comunidade ambientalista, o IF foi mantido e encarregado do manejo das chamadas Estações Experimentais, áreas onde se desenvolvem as pesquisas científicas, principalmente com silvicultura, produtos e subprodutos florestais – resinas, sementes, mudas.

Porém, em seguida, foi feita uma nova manobra: uma reorganização que transferiu para a FF toda a parte de pesquisa que estava alocada nos institutos de Estudos Geológicos e de Botânica, incluindo os pesquisadores (funcionários estatutários), criando-se um novo órgão, o Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA).

Ciência faz falta

Este ano, a APqC lançou o livro “Diagnóstico da Desestruturação da Pesquisa Científica Ambiental e do Sistema de Áreas Protegidas no Estado de São Paulo”, organizado e escrito por seis pesquisadores especializados em meio ambiente. Um dos autores, o pesquisador Felipe Zanusso Souza – que apresentou o trabalho em sessão da Alesp -, apontou a fragilidade da FF do ponto de vista político para gerenciar as áreas protegidas o que, na visão dele, é preocupante quando se fala em concessão para a iniciativa privada. Ele lembrou que 60% da água que abastece o estado vem daquelas áreas protegidas. “A pesquisa é fundamental para manutenção dessas áreas que têm uma importância muito grande do ponto de vista de serviços ecossistêmicos”, comentou Zanusso.

Lutgens lembra que o papel dos Institutos Públicos, como o Geológico, é produzir conhecimento e gerar informações que possam, de maneira preventiva, ajudar a proteger a sociedade em casos como os desastres causados pelas mudanças climáticas. O mais recente deles foi provocado pelas chuvas na cidade litorânea de São Sebastião, no qual 57 pessoas morreram, dezenas desapareceram e centenas ficaram desabrigadas.

“A gente que trabalha com ciência, sabe como ela pode contribuir para melhorar a sustentabilidade das áreas e desenvolver novas tecnologias”, reiterou a presidente da APqC, Patrícia Clissa.

O professor Sidnei Raimundo, do programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo (Promusp) trabalhou por 15 anos no IF (depois FF), deixando o órgão em 2006 para assumir o cargo na USP. Ele relata o desmonte a partir da terceirização que começou com os serviços de limpeza e mobiliário, depois com a fiscalização.

“O Estado não tem dinheiro para pagar um funcionário público concursado, mas tem dinheiro para contratar uma empresa”, criticou. Raimundo disse não ser contrário à terceirizações, porém, defende que certas atividades têm que permanecer com o Estado, porque são essenciais e custam tão caro que dificilmente renderão lucros. É o caso da fiscalização e do policiamento.

A Polícia Ambiental, que é uma divisão da militar (PM), sempre foi insuficiente para atender toda a enorme demanda de policiamento das áreas protegidas onde os infratores são caçadores, coletores de espécies florestais, madeireiras e não-madeireiras e quadrilhas de palmiteiros.

Um exemplo, relata Raimundo, é o palmito Juçara ou palmito doce (Euterpes edules), que está extinto na flora da região original na Mata Atlântica devido ao excesso de exploração, mas tem algum remanescente no interior das áreas protegidas. É aí, mata adentro, que estão as quadrilhas. “Onde está o palmito? Não é do lado da sede, onde está fiscalização privada. Está lá nos locais mais distantes, onde quase não tem fiscalização. E é óbvio que hoje, com a rede de celular e tudo mais, há uma comunicação muito forte entre infratores que anteveem com frequência a chegada da Polícia Ambiental”, relata.

O caso está na Justiça

Depois da votação da lei, as organizações que defendem a manutenção das áreas de pesquisa com o stado entraram com ações na justiça para reverter as decisões. O Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) encaminhou em outubro de 2020 um ofício ao então secretário de Infraestrutura e Meio Ambiente, Marcos Penido, que comanda o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), contra a reorganização dos órgãos ambientais. O ofício foi acompanhado de um abaixo-assinado contra a extinção do IF, com mais de 20 mil assinaturas.

Em seguida, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF) – na qual a APqC entrou como amicus curiae (amigo da corte, expressão que designa um terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador).

Desânimo e repercussão

O clima entre os pesquisadores que restaram é de desânimo. Duas funcionárias que pediram para não ser identificadas contaram que a passagem das atividades para o IPA foi seguida de um esvaziamento do instituto em termos de recursos financeiros, materiais e humanos. Além disso, tem havido tentativas de direcionamento dos temas de estudos para beneficiar assuntos pautados não pela ciência, mas pela perspectiva de negócios. Nada indica que a situação vá melhorar no atual governo do Estado que tomou posse este ano.

O cientista Paulo Artaxo, vice-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) e, também, da SBPC, frisou que o Estado de São Paulo tem sua maior área já convertida para agricultura como plantio de cana-de-açúcar e outros usos e é fundamental a preservação de áreas naturais para garantir os serviços ecossistêmicos que as florestas dão para as atividades econômicas estado. “Então, é realmente lamentável a concessão de áreas de conservação ambiental para iniciativa privada, que sempre tem unicamente interesses econômicos de curto prazo, e não interesses da sociedade como um todo”, afirmou Artaxo.

Procurada pela reportagem do JC com várias perguntas sobre o caso, a Semil respondeu com uma nota oficial enviada por e-mail, por meio de sua assessoria de imprensa, na qual destacava que todo o processo está suspenso por decisão judicial. Leia a seguir a nota na íntegra:

“A Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil) informa que o edital de Permissão de Uso, e não concessão, de cinco unidades de produção, foi suspenso por decisão judicial.  

Importante esclarecer que o certame para a permissão das cinco áreas (Estações Experimentais de Itapeva e Itirapina e das Florestas de Águas de Santa Barbara, Angatuba e Piraju) previa o manejo florestal das áreas de pinus e eucalipto, bem como a implantação de diversas obrigações contratuais visando a requalificação ambiental destas unidades de produção.

Tais obrigações deveriam ser cumpridas pelo permissionário, incluindo a promoção de ações de prevenção e combate a incêndios, a elaboração e implementação de um plano de manejo de espécies exóticas para prevenção, controle e/ou erradicação de espécies com maior potencial invasor a fim de evitar novas infestações, a reforma de edificações de uso institucional da Fundação Florestal ou do Instituto de Pesquisas Ambientais.

Além de promover a recuperação das áreas de preservação permanente de nascentes, em respeito ao Código Florestal, e a implantação de barreiras de 300 metros de vegetação nativa nas Estações Ecológicas como medida de proteção biológica, as áreas das Estações Ecológicas continuarão sob gestão e responsabilidade do Governo de São Paulo.”

A Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação, que atualmente é comandada pelo ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), Vahan Agopyan, respondeu por meio de sua assessoria de comunicação que o secretário não poderia atender à reportagem do JC e indicou procurar a Semil por se tratar de assunto relacionado ao meio ambiente.

Fonte: Jornal da Ciência

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