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Exemplo mundial da cultura de vacinação, com um Programa Nacional de Imunizações (PNI) consolidado desde 1973 e campanhas lideradas pelo ilustre Zé Gotinha, o Brasil tem enfrentado uma queda preocupante nas taxas de cobertura vacinal nos últimos anos. As razões para isso vão desde a perda de percepção da gravidade das doenças, uma vez que elas estão controladas pelas vacinas, até o medo de reações adversas e o desejo de viver uma vida “natural”, sem imunizantes nem remédios. Muito além de uma decisão individual e de foro íntimo, a hesitação à vacinação é uma questão coletiva, e já em 2019 foi considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma das principais ameaças à saúde das populações.

Para a gestora médica do Butantan Carolina Barbieri, a hesitação vacinal deve ser combatida com informação e diálogo, para resgatar no imaginário popular a imunização como um ato social e seguro. Em revisão publicada na revista Saúde e Sociedade, a médica infecto pediatra fala sobre os impactos da Covid-19 na resistência à vacina e no clamor por um imunizante para controlar a pandemia. Segundo o artigo, a vacinação e as medidas de distanciamento social são “vítimas de seu próprio sucesso”: ao atingirem seu objetivo, geram uma sensação de segurança e controle – que, na verdade, só foram alcançados graças às ações coletivas de prevenção.

“Ao mesmo tempo, houve um fortalecimento da crença na ciência. A vacina era um assunto diário. Víamos declarações da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] em tempo real na TV, o que nunca aconteceu antes. Por um lado, isso deu um valor às instituições, à ciência, e, por outro, deu voz a negacionistas e falsos especialistas na internet”, aponta Carolina. “A quantidade de desinformação propagada por essas pessoas durante a pandemia contribuiu para gerar insegurança em relação às vacinas.”

O evento adverso é uma das principais preocupações. Quando a imunização cumpre seu papel e reduz a incidência de diversas doenças, gera a impressão de que as vacinas não são mais necessárias – principalmente nas gerações que não viveram as consequências de vírus como o da poliomielite, que causa paralisia infantil. Enquanto isso acontece, reações adversas extremamente raras começam a ter mais visibilidade.

“Em um momento de controle, os eventos adversos das vacinas ganham uma importância superestimada, como se o risco de ter uma reação fosse superior aos riscos impostos pelas doenças. Mas não é”, diz a gestora médica do Butantan. Afinal, o processo de desenvolvimento de um imunizante é extremamente rigoroso, e o produto só é liberado se o estudo demonstrar um perfil de segurança adequado. Todas as etapas da pesquisa de um novo imunobiológico são acompanhadas de perto e validadas por órgãos regulatórios como a Anvisa, no Brasil, e, por vezes, as vacinas contam com o aval da própria OMS.

A queda da vacinação pode resultar no retorno de doenças graves já erradicadas ou controladas no Brasil, como aconteceu com o sarampo, que voltou a causar epidemias em 2018 após uma redução na cobertura – a porcentagem de pessoas imunizadas com as duas doses caiu de 92% em 2014 para 76% em 2018. O sarampo é altamente transmissível e, em casos mais sérios, pode causar pneumonia e inflamação no cérebro. Segundo o DataSUS, departamento de informática que reúne dados do Sistema Único de Saúde do Brasil, a cobertura de várias outras vacinas também caiu da faixa dos 90-100% para 60-70% nos últimos anos.

Hesitação vacinal vs. negacionismo

Carolina Barbieri ressalta que hesitação vacinal é diferente de negacionismo à vacina, quando se nega uma verdade, um fato comprovado cientificamente. O movimento antivacina moderno surgiu de um falso estudo, que partia de dados inventados para associar o autismo à vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola). Apesar de o artigo ter sido amplamente desmentido pela comunidade científica internacional e ter se revelado fraudulento, algumas pessoas ainda reproduzem o discurso.

“A hesitação vacinal está mais relacionada ao medo e à dúvida, mas ainda existe espaço para diálogo, que deve ser movido por evidências científicas. Se uma pessoa saudável toma vacina e tem alguma reação, isso gera um impacto. Temos que saber comunicar isso com transparência, explicar que são efeitos raros e fortalecer os benefícios das vacinas”, afirma a cientista. Vale ressaltar, também, que a maioria dos eventos adversos são leves e passageiros.

Outra explicação para o receio de se vacinar é o desejo de viver uma vida “natural”. Durante o seu doutorado, em 2010 – quando as coberturas ainda eram elevadas e não se falava em negacionismo à vacina no Brasil, e nem havia o termo “hesitação vacinal” –, Carolina observou uma tendência em algumas capitais do país de pessoas com condições socioeconômicas mais altas se vacinarem menos do que aquelas em condições mais baixas.

“Famílias com alta escolaridade optavam por não tomar vacina e não vacinar os filhos. Eram pessoas adeptas de uma vida natural, com menos intervenções medicinais. Além disso, elas começavam a ter acesso a algumas informações de movimentos antivacina do exterior, gerando uma série de dúvidas”, explica. Essa escolha coloca em risco não só a própria vida da pessoa, como a daquelas ao seu redor, já que impacta na imunidade coletiva e ajuda a aumentar a circulação de doenças preveníveis.

Um país com tradição em vacinação

Estratégias de imunização vêm sendo construídas no Brasil desde o início dos anos 1900, com o trabalho do sanitarista Oswaldo Cruz na promoção da vacinação contra a varíola. Mais tarde, na década de 1960, o sucesso de campanhas contra a varíola e a poliomielite, e a criação do PNI em 1973, formaram a base de uma cultura de imunização no país.O programa, que começou focado na vacinação infantil, foi ampliando a oferta de vacinas e o seu público-alvo, ganhando destaque mundial.

“As pessoas viam a vacina como um valor, um ato civil. Existiam várias estratégias para incentivar a imunização, envolvendo todos os meios de comunicação, ações em praças públicas, vacinação de celebridades”, conta Carolina.

A cientista acredita que é possível resgatar essa cultura e recuperar os altos índices de vacinação. Mas, para isso, é necessário continuar combatendo fake news, fortalecer a comunicação das campanhas e se adaptar à nova realidade, reinventando as formas de falar com o público – especialmente com os mais jovens.

“Nós sabemos fazer: temos estrutura, profissionais qualificados, logística. Mas não podemos usar as mesmas estratégias da década de 1980, porque o jovem não vai para o posto ler cartaz, não assiste mais TV aberta. A mensagem que queremos passar é que, ao se vacinar, você salva vidas, diminui os gastos com saúde, reduz os afastamentos nos trabalhos. Além dos benefícios na saúde, existe a perspectiva econômica: vacina não é gasto, é investimento. Cada dólar investido em vacina retorna em custos de saúde economizados e produtividade”, reforça.

Fonte: Instituto Butantan

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