Olga

Com 50 anos de carreira dedicados à imunologia e à pesquisa básica, sendo mais de 30 deles no Instituto Butantan, a pesquisadora científica do Laboratório de Imunogenética, Olga Célia Martinez Ibañez dá seus últimos passos como uma colaboradora da instituição. No final de 2023, ela se aposentará deixando um legado para os novos profissionais da área e com o orgulho de ter ajudado a estabelecer as bases da ciência brasileira para as pesquisas em imunogenética em modelos animais – seu foco desde o início da carreira.

Formada em Ciências Biomédicas pela Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje parte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com especialização em Imunologia pelo Instituto Butantan, Olga possui mestrado e doutorado em Microbiologia e Imunologia pela EPM, e pós-doutorado pelo Institut Curie, de Paris, na França.

Hoje, quem vê essa lista de títulos não imagina que a entrada no curso de Ciências Biomédicas não era a primeira opção de Olga. Ela queria ser médica, seguindo os passos de seu pai e irmãos.

“Eu queria cursar Medicina, mas eu acabei entrando em Ciências Biomédicas acatando uma sugestão da minha cunhada, Dra. Tania Martinez. Ela era estagiária do Departamento de Biofísica da universidade e insistiu para que eu fizesse o curso de Ciências Biomédicas dizendo que eu iria gostar, e ela estava certa. No terceiro ano eu poderia mudar para o curso de Medicina, mas preferi seguir e buscar um estágio em um laboratório, que era obrigatório no quarto ano”, relembra Olga.

Sua carreira profissional em imunologia começou em 1969 em uma conversa com Otto Guilherme Bier, imunologista e bacteriologista pioneiro no Brasil, que à época era diretor do Instituto Butantan, e com Helcio Passos, que era professor do departamento de Imunologia da EPM. Eles sugeriram que Olga procurasse a médica imunologista Maria Brazil e a imunologista Maria Siqueira, já que elas estavam formando um laboratório voltado ao tema no Instituto Biológico.

“Comecei o estágio em setembro de 1969 no Instituto Biológico trabalhando em um projeto interessante para induzir glomerulonefrite em ratos por injeção de anticorpos anti-glomérulos produzidos em cobaias”, explica a pesquisadora. Esse projeto, inclusive, foi sua tese de mestrado.

A partir daí, ela fez parte do grupo que criou o modelo Biozzi de camundongos bons e maus respondedores para pesquisa de imunogenética, idealizado pelo médico imunologista italiano Guido Biozzi, que trabalhava no Institut Curie e trouxe o estudo para o Brasil em um programa de colaboração com o Laboratório de Imunologia do Instituto Biológico.

Professora credenciada do Departamento de Imunologia da Universidade de São Paulo (USP) e da EPM, onde deu aulas de pós-graduação, Olga destaca que sua maior contribuição foi, de fato, na bancada de laboratório, seguindo os passos de sua orientadora e parceira de décadas Maria Siqueira.

“Eu sempre gostei de trabalhar próximo aos meus alunos porque podíamos aprender juntos. Obviamente tinha a parte teórica, mas eu gostava da prática na bancada para desenvolver os modelos. Eu tive esse treinamento com a Maria Siqueira, que fazia da mesma forma comigo no início da minha carreira, e foi a melhor forma que encontrei para passar os conhecimentos aos estudantes”, comenta.

O modelo Biozzi

Este modelo era para lá de inovador no final da década de 1960. Seu objetivo era obter linhagens de camundongos bons e maus respondedores para funções imunológicas como a produção de anticorpos. Em cada processo, os acasalamentos de camundongos selecionados nos extremos de alta ou baixa resposta, em uma grande população heterogênea de animais, eram repetidos por gerações sucessivas até ser atingida a máxima separação entre duas linhagens. O processo é trabalhoso, exige a identificação de cada animal, e para separar as duas linhagens são necessárias cerca de 20 a 30 gerações.

“Para começar o experimento, me recordo que fomos buscar camundongos no zoológico, aqui no Butantan, e na Unicamp, que foram cruzados entre si com os animais da colônia do Instituto Biológico para produzir uma população heterogênea inicial. Depois nós imunizamos todos os animais com salmonela, que é um antígeno complexo, para verificar os títulos de anticorpos de cada um para a escolha dos acasalamentos. Só depois de cerca de 20 gerações conseguimos separar as duas populações, uma produzindo títulos muito altos e outra com títulos muito baixos de anticorpos”, explica.

Modelos animais podem refletir o que acontece na população humana, em que há uma grande variabilidade na capacidade de resposta imunológica. Nesse contexto, o modelo Biozzi demonstrou que havia um controle genético para a intensidade da resposta imunológica. Esses dados são importantes e úteis para auxiliar, por exemplo, no estabelecimento de esquemas vacinais para novos imunobiológicos em desenvolvimento.

Os anos se passaram, as linhagens se estabilizaram e os estudos evoluíram. Em 1985, Biozzi teve a ideia de fazer outra seleção de camundongos, agora com foco no controle genético da reação inflamatória. Olga também estava lá para participar dessa nova fase, indo até a França para ajudar a estabelecer o novo procedimento.

Neste modelo, os pesquisadores induzem uma inflamação no animal, mas sem prejudicar a sua saúde. Para facilitar a análise genética, foram utilizadas oito linhagens isogênicas de camundongos na formação da população inicial. Os resultados foram os mesmos dos anticorpos, ou seja, a separação de uma população com resposta alta e outra com resposta inflamatória fraca.

“O interessante é que, embora não tenham sido analisados durante o processo de seleção, ao final do experimento as linhagens diferiram amplamente também na resistência e suscetibilidade a doenças autoimunes como artrite reumatoide, câncer em vários órgãos induzido por agentes químicos, infecções bacterianas e virais, reações ao envenenamento por toxinas animais e capacidade de regeneração de tecidos. Os resultados demonstram a importância do controle genético da inflamação em todas estas características”, explica a biomédica.

A pesquisa científica moderna busca constantemente alternativas para o uso de animais, mas eles ainda são necessários nos estudos de novos medicamentos e vacinas, além de ajudar a entender as doenças com mais profundidade. “Como o nosso modelo é geneticamente heterogêneo, ele reflete o que acontece na população humana, que também é heterogênea. É, portanto, um modelo alternativo interessante e bastante informativo”, complementa Olga.

Legado no Butantan

Foi em 1989 que Olga enfim entrou no Instituto Butantan, junto com Maria Siqueira e sua equipe. Há quase 35 anos na instituição, ela se orgulha do legado desses anos e de ter conseguido continuar a estudar camundongos até hoje – sem deixar de propor novos projetos, manter colaborações internacionais e assumir o compromisso de levar a pesquisa básica para frente.

“Nós chegamos ao Butantan em duas Kombis, com três mil camundongos dentro e fomos muito bem recebidos aqui. O Dr. Wilmar Dias, que era diretor científico do Instituto, nos cedeu um biotério para acomodar nossos animais. Nós trabalhamos no mesmo biotério até hoje”, conta Olga.

Desde 2016, a pesquisadora faz parte do Centro de Excelência para Descobertas de Alvos Moleculares (CENTD), projeto do Instituto em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e GSK, que é coordenado pela diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação do Butantan, Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, que busca descobrir alvos terapêuticos envolvidos em doenças inflamatórias e articulares, como artrite reumatoide e a osteoartrite.

O Laboratório de Imunogenética contribuiu para o projeto cedendo camundongos para estudar possíveis alvos para doenças relacionadas às articulações. O modelo utilizado foi validado para testes de novas drogas com efeito anti-inflamatório. “Os animais poderão ser usados para validar ação de novos medicamentos”, completa a pesquisadora.

 

Referência na imunologia 

O tempo de amizade e trabalho conjunto com Maria Siqueira é lembrado com muito carinho por Olga. Além de ser a responsável por lhe dar a primeira oportunidade na área, Maria é considerada a primeira imunologista do Brasil. Foram quase 40 anos de convivência nos Institutos Biológico e Butantan – até o falecimento da imunologista, em 2015.

“A Maria Siqueira é uma pessoa que eu sinto muita falta, sempre trabalhei com ela. Mesmo depois que ela se aposentou, continuou acompanhando minha carreira. Ela me ensinou tudo, desde pegar na pipeta até arrumar a bancada, trabalhar no biotério e também foi minha orientadora no tempo de estágio”, relembra Olga.

Maria deixou marcas relevantes no mundo da ciência brasileira. Entre os feitos estão o pioneirismo na ligação entre institutos científicos e cursos de pós-graduação, melhorando o conhecimento dos profissionais de imunologia; a participação na formação da carreira de pesquisador científico nos anos 1970; e contribuições para a criação da Fundação Butantan, que apoia as atividades do Instituto.

Segundo Olga, Maria Siqueira era uma pessoa discreta e que gostava de promover as pessoas que trabalhavam com ela. “Eu tenho uma gratidão imensa pela Maria. Ela dava oportunidades e também estabeleceu colaborações internacionais, tornando as viagens para aperfeiçoamento profissional fora do Brasil acessíveis para nós”, recorda.

Boas lembranças na memória 

Foram muitos anos na bancada do laboratório. Olga se recorda de momentos divertidos junto aos colegas – desde a reforma total do biotério, passando pelas lavagens dos camundongos, até sustos com o aparecimento surpresa de uma serpente. “Eu não sei como eu pulei tão alto para cima da bancada no dia que eu vi uma cobra coral na minha frente. No fim, era uma falsa coral, que era pet de um rapaz que trabalhava no laboratório ao lado”, ri a pesquisadora.

Prestes a se aposentar, Olga ainda pretende concluir projetos em andamento e para só então se dedicar às atividades extraprofissionais. “Eu não vou ter problema depois da aposentadoria. Eu tive uma vida simples, fiz o melhor que eu pude sempre e assumi responsabilidades. Agora vou continuar estudando piano, me dedicar à leitura, à minha ginástica e curtir meus netos”, diz.

Fonte: Instituto Butantan

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